segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A justiça do povo

Não sei de onde veio o raio da miúda, mas quando dei por mim a tentar entrar para o 714, depois de uns dois minutos na paragem (ai Lisboa, que és tão boa) sou ultrapassada pelo raio da pita. Eu de ipod nos ouvidos, apenas mais uma pessoa à espera e, instintivamente, lá agarrei a catraia pelo braço para lhe dar umas palavrinhas de civilização. Nada de especial, coisa básica. Do tipo : ‘isto não é chegar e entrar, espera pela tua vez e depois entras’. Ela saiu-se com um pardon um tanto ou quanto estranho para quem parece ter percebido cada sílaba do que eu disse, e um tanto ou quanto estranho para quem não tinha a mínima pinta de camone 'das Franças'. Mas como quem vê caras não vê corações, deixei a impressão por isso mesmo e segui em busca de um lugar sentado.

Uma paragem depois, já no Cais do Sodré, apercebo-me de um sururu mais sonoro do que o meu ipod. Silencio a música e, entre acusações de assalto, vejo a miúda do pardon correr dali para fora e em pouco mais do que um virar de cabeça desaparecer na confusão de carros e peões. Continuo sem perceber nada, até que, lá dentro, vejo as atenções se fixarem numa outra miúda. Apenas a ouço barafustar com o motorista agarrada à mesma frase: «Você viu perfeitamente que entrei em Santos». Era verdade.

Reconheci-a dos meus dois minutos de espera na paragem mas continuava sem compreender de que raio estava a ser acusada nem em que medida entrar em Santos servia de álibi para o que quer que fosse. E o 714 ali, sem mexer uma roda. E a miúda sobrante também ali, a despejar palavras de indignação contra palavras de acusação. Acho que ficámos nisto uns intrigantes cinco minutos até a geringonça da Carris retomar a sua marcha.

De novo em andamento, a miúda sobrante faz-se ouvir, gritando pelos compromissos do dia que, àquele ritmo de viagem, lhe prometiam atrasar a chegada a uma entrevista de emprego. Pouco depois, curiosamente, também ela desaparece, embora sem a espectacularidade da corrida da suposta camone: limitou-se a sair na estação de Corpo Santo. Deito o meu olho para a figura dela e desconfio: quem é que vai a uma entrevista de emprego com a barriguita ao léu?

Estranhei, mas depressa abstraí-me da improbabilidade até que, já na iminência da minha descida, o 714 faz uma nova paragem. Agora à porta da esquadra da PSP da Praça do Comércio, de onde saem uns quatro agentes em direcção ao motorista. Para quê? A pergunta anima uma conversa a três que à minha direita percorre dois bancos. Entre um ‘vê-se bem que as duas raparigas estavam combinadas’ e outro ‘está-se mesmo a ver que a miúda só saiu antes porque ouviu o motorista comunicar com a polícia’, detenho-me num perturbante sentido de justiça.

«Não há direito! Ainda se fossem roubar quem não precisa…». Deduzo então que o mal não está no crime nem no criminoso, mas sim na vítima.

 Pardon?

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