terça-feira, 1 de junho de 2010

O passaporte em 3 momentos e 1 aviso

I. A dúvida razoável

O espanto perseguiu-me por mais de uma vez no meu último embarque. Passaporte em mãos, olho no papel, olho em mim, uma repetição teimosa de movimentos e a expressão da incredulidade: “De certeza que são a mesma pessoa?”. Bom, se até a mim me custa a acreditar que aquela era eu há cinco anos, o que diria daqui a mais cinco anos, data marcada para a renovação da minha imagem de acesso ao espaço aéreo?

II. O roubo

Andei por lá duas vezes. Uma por causa da ‘chica-espertice’ crónica da adolescência (foge-me aqui a lembrança para o chamado passe do pongue’); a outra por força de uma simulação de cunho profissional. Calculo acima de uns dez anos de folga entre as duas experiências, mas guardo de ambas a mesma marca: o pessoal das esquadras tem a mania que possui um talento e tanto para a comédia e um charme e peras para entreter legiões de vítimas. Vai daí é ouvi-los a ‘fazer’ piadas atrás de piadas e a exibir gargalhadas atrás de sorrisos. Vai daí procuro manter deles a mesma salutar distância que mantenho daqueles malucos televisivos. Por isso, em vez de me dirigir à esquadra mais próxima para inventar que o meu passaporte, ainda válido mas já caducado de actualização, foi roubado, preferi seguir logo para o Governo Civil e contar a velha história do documento perdido. Resultado? Aos 60 euros de furto tabelado – perdão, preço – os serviços queriam agravar outros 30 por ter perdido o dito cujo. O quê? Pois. Diz que 30 euros é a diferença entre ser roubada ou apenas despistada. O que vale é que sou uma despistada simpática (tem momentos) e cheia de sangue na guelra para pedinchar. 90 euros? Oh, senhor, tende piedade de mim! E o senhor lá atendeu as minhas preces. Abençoado seja!

III. A modernice

Sem dentes à mostra e com as orelhas à vista. Assim se quer o passageiro aéreo da era electrónica, e assim se afasta esta passageira aérea daquela que deveria ser a imagem da sua renovação. Aliás, já que escrevo sobre isto, assinalo ainda que, nestes tempos de modernice, esta potencial viajante também se afasta da sua assinatura. De tal forma que só ao fim da enésima tentativa de rabiscar o meu nome, me pude rever, ainda que apenas de perfil, na minha identidade caligráfica.

IV. O aviso

Diz o senhor que teve piedade de mim que nisto do passaporte moderno ao fim de duas perdas (ena, que o homem está cheio de fé em mim), acabaram-se os passeios nas nuvens. Até quando? Para sempre, como diria o Pedrito.

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