segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Testamento de Paz

Li e reli aquela convocatória para uma participação democrática: «Alguém explica?». Abstive-me o tempo de um e outro comentário de mais fácil pronúncia, mas acabei por exercer a minha liberdade de expressão, confirmando, num ápice, fundadas suspeitas: aquele apelo tinha tanto de democrático quanto a Coreia do Norte, o Zimbabué ou a Venezuela. Ainda assim, não poderia deixá-lo obstruir a minha veia dissidente. Vai daí manifestei-me, vai daí comprovei uma das minhas leituras dos dias: o fácil acesso à informação desvirtuou as exigências do conhecimento.

Hoje, ao contrário do que acontecia nos tempos pré-google, todos se acham uns especialistas em tudo. Ouvem umas coisas aqui, lêem outras coisas ali, e, à distância de um clique convencem-se de que dominam o domínio das certezas. Eu, mísera mortal que teima em ver na profusão de informação o reconhecimento da necessidade de um permanente e acrescido investimento cognitivo, nada tenho contra a confiança que os titulares do conhecimento automático insistem em exibir. O que me faz espécie é a arrogância que teimam em produzir, a pretexto de uma tal de soberana convicção e reflexão.

Com que então Obama nada fez para ganhar o Nobel da Paz? Percebo que para a maioria ainda não tenha feito o suficiente, mas confesso não entender puto dos argumentos que me têm sido arremessados à passagem de uma já longa parada de contestação. Para começar, o princípio de tudo: Paz. Definam-me Paz, se faz favor. Mas, já agora, tentem fazê-lo sem a inspiração da Caneças. Meaning: poupem-me a definições de construção antónima, porque o conceito de Paz está longe de se esgotar na sua relação directa com a guerra, simplesmente porque há muito que a guerra deixou de se vergar à fórmula minimalista da presença ou ausência de armas, do envio ou retirada de tropas. Se assim não fosse, dificilmente haveria um Al Gore na célebre lista norueguesa, mesmo que em co-estrelato com um Painel da ONU.

Também não percebo o apregoar de injustiças históricas, hasteado em memória de Ghandi e de outros honrados combatentes da Paz mundial. Mas esta não é uma injustiça anterior, mas mesmo muito anterior à votação em Obama? Quantos e quantos eleitos estiveram a eras de contribuir tanto para a história da Paz quanto Ghandi? Serve a interrogação apenas para sublinhar que não ser a melhor escolha, é muito diferente de não ser uma boa escolha. E, já que de escolhas se fala, que tal apontarem-me os vossos favoritos? Huuuum… haaaam… pois! Obama não serve, mas servirá com certeza qualquer um dos mais de 170 nomeados à vitória, cujo currículo a maioria dos mortais desconhece, mas aceita subscrever automaticamente em nome do culto do reconhecimento instantâneo de um currículo mediaticamente divulgado.

Insisto em repetir: não ser a melhor escolha é muito diferente de não ser uma boa escolha. E aqui voltamos ao grande ponto da desordem: insiste-se que em nove meses de Casa Branca o Presidente dos EUA teve tempo para promover o cão d’ água português e pouco mais, mas exige-se que, nesses mesmos nove meses de Casa Branca, o Presidente dos EUA tenha tido tempo para retirar milhares de soldados que permanecem no Iraque e no Afeganistão.

O que dirão então, quando perceberem que, para ser anunciado vencedor, Obama teve de ser escolhido no início de Fevereiro, menos de um mês depois de tomar posse? Será que vão reclamar mais razão, ou tentarão saber mais sobre «o absurdo», «o escândalo», e «o ultraje» desta indicação? Continuarão a dizer que o prémio abre um precedente – o da sobreposição das intenções sobre as acções –, ou dar-se-ão ao trabalho de conhecer a argumentação de quem atribuiu a distinção? Admito até que possam discordar das razões apresentadas pelo pessoal do Comité de Oslo, mas seria útil à defesa da causa que ergueram demonstrar que conhecem mais do que o genérico da génese.

Chamem-me ingénua, parva, ‘obamamaníaca’ e o que mais quiserem. Mas não fui eu quem se lembrou de ir buscar o vencedor de 1990 como termo de comparação. Foram as próprias gentes da votação que se apressaram a esclarecer que, tal como fizeram em relação à Perestroika de Gorbachev, quiseram reforçar/impulsionar o poder negocial do homem mais poderoso do mundo, líder da nação da guerra e da Paz, pivô de uma série de compromissos de pacificação.

Prematuro? Talvez. O tiro pode sair pela culatra? Pode. Mas, para mim que segui a corrida para Washington desde o primeiro minuto; para mim que vi o ainda candidato presidencial derrubar históricos muros de intolerância racial (ai, que temos um negro na corrida) e religiosa (ai, que este Hussein sugere raízes muçulmanas); para mim que vi Obama restaurar os princípios do diálogo em toda e qualquer relação externa – tanto do propalado eixo do mal como do esotérico eixo do bem – ; para mim que vi um recém-empossado Presidente assinar o fim de Guantánamo – just for the record há mais dois sírios em Portugal –; para mim que o vejo respeitar (em vez de desprezar) os esforços globais no combate às alterações climáticas; para mim que testemunho o regresso da diplomacia aos EUA (olha, olha, houve um statement no Cairo); para mim que, graças a Obama, vi o mundo percorrido por uma onda sem paralelo de esperança e de crença na renovação política (chegaram a chamá-lo Presidente do mundo); para mim, que vejo morrer o legado bushiano, tudo isso já é muito. Mais ainda porque a ‘minha’ Paz se constrói pelo diálogo, pela esperança e pela tolerância – valores que a meu ver Obama já ajudou a restaurar. Por tudo isso e um tanto mais, não consigo ver o Prémio Nobel como mais um engodo panfletário nem como mais uma intrincada promessa.

2 comentários:

  1. Sim, senhora! Se eu fosse a ti (ou se eu fosse tu, como preferires), candidatava-me a um cargo qualquer na casa branca, como argumentadora! Lol!
    Bela exposição de caso! :)
    Também não sei bem o que pensar do Nobel da Paz, mas parece-me tudo menos mal atribuído :)
    Beijocas e continua com esse fabuloso poder de argumentação! :)
    Beijos!
    Iva

    ResponderEliminar
  2. Só com o teu voto, já me sinto eleita :)
    bjs gordos, a rebentar de saudades...

    ResponderEliminar